SIMPLESMENTE, HUMANOS
Papa Bento 16 deixou a cadeira de São Pedro após celebrar sua última audiência geral na Praça São Pedro, no Vaticano (27/02). Foto: AP
Só o tempo ou, quiçá, nem ele, poderá
revelar à História todas as razões que levaram o Papa Bento XVI à renúncia de
seu pontificado. Demitir-se de um cargo para o qual foi eleito vitaliciamente e
que alça seu titular, no imaginário popular e por força da fé e da tradição, à
distinguida condição de “representante de Deus na Terra”, é gesto tão singular
quanto surpreendente.
Da instituição por ele dirigida
reconhece-se, mundialmente, sua força e poder.
Mesmo que a História lhe haja imputado,
ao curso dos tempos, a autoria de graves violações aos mais caros valores
civilizatórios, seus dirigentes e fiéis chamam-na de “santa”. E, conquanto da
lista de seus sumos pontífices, constem nomes a quem se atribuem atos da mais
abjeta imoralidade e flagrante injustiça, o titular do cargo, recebe, em
qualquer circunstância, o tratamento de “Santidade”.
O adjetivo que antecede a nominação da
Igreja Católica Apostólica Romana e o tratamento reverencial reservado a seu
sumo pontífice, justificam os teólogos, não se vinculam exatamente ao
procedimento institucional e pessoal eventualmente adotado por um por outro,
mas da missão sacrossanta de que estariam investidos. Em tese, pois, estariam
ungidos da perfeição e das virtudes divinas, mas, na prática, como qualquer
pessoa ou instituição, sujeitam-se aos erros pertinentes à humana imperfeição.
Difícil entender essa contradição fora do
dualismo sagrado/profano. Por muito tempo, enquanto vigia no mundo a crença na
existência de uma “ordem divina” em inconciliável contraste com a “ordem humana”,
aquela incorrupta, esta corrompida por força do “pecado original”, havia lugar
para esse fatal e insuperável maniqueísmo. Dentro dessa concepção, uma única
instituição poderia se arrogar o privilégio da origem divina que a faria ponte
entre os céus e a Terra. Mas, composta que é de homens, justificava-se fosse,
ao mesmo tempo, santa e pecadora, virtuosa e devassa, sem que, com isso,
perdesse autoridade e credibilidade.
A modernidade, no entanto, ainda que
disso não se apercebesse claramente a Igreja, foi, pouco a pouco, superando o
maniqueísmo sagrado/profano, divino/humano, substituindo-o simplesmente pelo
natural. O fenômeno universal é regido por leis naturais, que abarcam o físico
e o moral, o material e o espiritual. Não é preciso tirar Deus dessa nova
concepção de universo. Ele aí está presente como “inteligência suprema e causa
primeira de todas as coisas”, consoante tenta defini-lo O Livro dos Espíritos
(1857). Mas, para esse Deus não há pessoas e nem instituições privilegiadas,
acima do bem e do mal. “Criados” todos simples e ignorantes, porque resultantes
de um longo processo evolutivo, tornamo-nos capazes de nos reconhecer mutuamente
como iguais em direitos e obrigações, sujeitos a erros e acertos e subordinados
a uma mesma lei universal. Somos, no plano e no estágio em que nos encontramos,
simplesmente, humanos. Como humanas serão todas as instituições que formos
capazes de criar.
É nesse contexto que o velho conceito de
santidade vai dando lugar ao de humanidade. Descobre-se, pouco a pouco, que
toda a virtude, antes tida por revelação divina a alguns intermediários
privilegiados, está, de fato, ínsita na própria natureza humana, como fagulha
da divindade que a tudo deu origem e que a tudo alcança. Na medida em que essa
consciência se faz comum entre homens e mulheres, percebe-se que não há mais
lugar para distinções entre uns e outros e nem para outorgas representativas da
divindade, com leis que assegurem privilégios, sejam estes por crença, sexo,
ideologia ou etnia.
Essa mesma consciência de humanidade que
a todos nos submete a princípios éticos universais é avassaladora. Pouco a
pouco, derruba, em todos os quadrantes, as mais resistentes autocracias e
aristocracias. Instituições, grupos raciais, políticos ou religiosos que teimam
em preservar seus membros da censura imposta por regras que a civilização e a
modernidade tornaram mundialmente cogentes, mais cedo ou mais tarde, terão de
se submeter a esse tratamento igualitário de que buscaram se furtar. É o tempo
da humanização que está um passo à frente da santificação.
Sem ser exatamente um santo, título que,
talvez, até o incomodasse, Joseph Ratzinger entendeu, quem sabe antes de seus
pares, que é simplesmente um homem e que humana é, simplesmente, a instituição
que dirigiu. Seria esse o móvel de sua renúncia?
Milton R. Medran Moreira
Advogado e jornalista.
Presidente do Centro Cultural Espírita de Porto Alegre.
(Publicado
em Zero Hora de 28.02.2013)
Imagem Bento XVI
http://ultimosegundo.ig.com.br/mundo/2013-02-28/veja-imagens-da-despedida-de-bento-16.html
Imagem Bento XVI
http://ultimosegundo.ig.com.br/mundo/2013-02-28/veja-imagens-da-despedida-de-bento-16.html
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